[Por Luiza Schirmer / Redação] 

Uma estante repleta de perucas e uma penteadeira digna de camarim se destacam na sala coberta por azulejos brancos. No alto da parede, quadros de mulheres sorridentes, genuínas, tendo ao fundo paisagens cobertas por árvores e pela luz do sol. Algumas usam lenços, que contrastam com o cabelo ou com a calvície – herança da luta contra o câncer. Um aspecto, no entanto, é comum a todas: a leveza no olhar e no espírito.

Decoração da sala de eventos da AAPECAN poderia ser confundida com camarim. – FOTO: Luiza Schirmer

Por mais de um ano, o foco do mundo inteiro tem sido a pandemia de Covid-19. Como ela afetou nossas vidas, as mudanças abruptas que causou nas mais diversas  rotinas, a angústia de não saber quando tudo isso acaba. Até se chegou a falar que esse seria o “novo real” da sociedade. Para aqueles que convivem na Associação de Apoio a Pessoas com Câncer (AAPECAN), entretanto, o coronavírus é só mais um percalço na luta diária para adiar as despedidas.

Confira a matéria na íntegra:

Mais do que Mãe

“Já são 20 anos de tratamento”, disse Fátima Lemos Schneider com uma risada tragicômica. Seu filho Carlos, de 24 anos, trata um câncer no sistema nervoso central desde os 4 anos de idade. Por interferir no nervo óptico, sempre que a condição do jovem piora, sua visão é comprometida. “Ele está de licença do trabalho agora porque a última quimioterapia não surtiu efeito”, conta a mãe, que logo após a entrevista levou o filho para a sessão de radioterapia. 

Natural de Cruz Alta, Fátima disse que precisou vir à capital para conseguir dar continuidade ao tratamento de Carlos. “Se não fosse pela AAPECAN, teria sido inviável vir para cá. Eu não sei o que teria feito”, relata a mulher de 52 anos que já perdeu o primogênito – vítima de um afogamento – e teve de criar o filho do meio junto a enfermeiras, psicólogos e neurologistas. “Ele sabe dos problemas que têm, que o tumor dele é inoperável. A radioterapia vai estabilizar por algum tempo, e é esse tempo que temos. E tá bom. É assim que a gente encara”, encerra ela, com olhos marejados sobre a máscara branca, escondendo um sorriso resignado que o olhar transparece.

A história de Fátima Lemos: nove minutos de conversa que trouxeram 20 anos de sofrimento, luta e orgulho. – FOTO: Luiza Schirmer

Apoio sem fim

Para Lauriana Nardini, assistente social da AAPECAN, deixar de ajudar personagens como Fátima e o filho não é uma opção. “O câncer não pára”, lembra ela, “não tem como controlar. Por isso a continuação do tratamento e do apoio é tão fundamental”. A voz da assistente é trêmula durante a entrevista, porém suas palavras são firmes, especialmente quando o assunto é o impacto do Coronavírus na rotina da instituição. Para se ter uma ideia, antes a estrutura da AAPECAN comportava cerca de 26 pessoas. Hoje, esse número caiu para 18. 

“Nós mantivemos os atendimentos presenciais, sempre respeitando todos os protocolos, focando nas pessoas que vieram de fora em busca de suporte material e alimentar”. Ela conta que uma das principais mudanças geradas pela pandemia foi o crescimento da demanda por cestas básicas e suplementos alimentares. “Muito disso é para suprir a questão da fome, já que a pandemia agravou ainda mais as dificuldades físicas e financeiras dos nossos usuários”.

Para compreender melhor seu funcionamento, a AAPECAN consiste em uma espécie de hotel gratuito para pessoas em tratamento oncológico, que ficam na casa durante a semana enquanto realizam os procedimentos médicos e retornam para casa no final de semana. Segundo Lauriana, a Associação de Apoio a Pessoas com Câncer conta com 14 unidades no Rio Grande do Sul, estando presente no estado há 16 anos. “Nosso foco é realmente o apoio aos pacientes oncológicos e seus acompanhantes, oferecendo orientação psicológica, encaminhamento para médicos e hospitais e assessoramento na defesa dos direitos dessas pessoas”, completa.

Fachada da Associação de Apoio a Pessoas com Câncer, em Porto Alegre. – FOTO: Luiza Schirmer

 Situada no bairro São João, na zona norte de Porto Alegre, a casa azul e rosa se assemelha muito a um hostel ou uma pousada. Quartos frios e iluminados, um refeitório com uma vista calma da cidade e uma sala de estar com decoração descombinada e móveis gastos simbolizam o contraste entre a dedicação extrema de todos que trabalham lá e a carência de itens como camas e cobertores. “Toda ajuda é sempre bem-vinda”, ressalta Lauriana. “Por mais ajuda que recebemos da comunidade, estamos sempre à procura de doações”.

Quartos da instituição receberam ares-condicionados doados pelo Sicredi. – FOTO: Luiza Schirmer

Tudo Se Ajeita

Quando questionada sobre sua rotina na associação, Fátima diz que ainda tem muito a conhecer. “Estamos aqui há uma semana e, como trouxe trabalho de casa, não tive tempo de me inteirar de tudo”, comenta ela com empolgação. Recém-formada em biomedicina, ela conta que iniciou a faculdade para estimular o filho. “Assim que saiu do ensino médio, ele disse ‘Ah mas eu não vou conseguir’”, ao que Fátima respondeu: “vai sim, nós vamos estudar juntos e nós dois vamos fazer”. E assim aconteceu, ou, pelo menos, em parte. “Eu acabei a minha faculdade e ele ainda não, mas isso é só um detalhe.Tudo se ajeita”, assegura. Vindo de uma personagem como ela, discordar seria uma blasfêmia.

 

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