| Lívia Rossa |

O sol já estava se recolhendo quando uma voluntária das causas animais descarregou, em frente à casa outra protetora, as rações que estavam no banco de trás do carro. Junto dos sacos de comida, uma espécie de rede protetora para animais andarem seguros ocupava grande parte do banco de trás do veículo que, assim que dobrou a esquina da Vila Nazaré, localizada na zona norte de Porto Alegre, entrava em choque com o contraste do entulho remanescente das casas demolidas.

No meio dos escombros, cachorros e gatos abandonados fazem morada. Com as obras de ampliação da pista do Aeroporto Salgado Filho, a região está em processo de reassentamento desde junho de 2019. Famílias inteiras estão sendo deslocadas para o loteamento Irmãos Maristas, no bairro Rubem Berta. Desde que a realocação foi imposta, muitos moradores simplesmente decidiram que os seus animais, companheiros de uma vida, eram estorvos e não poderiam ser levados.

Era uma quarta-feira de tarde quando o grupo independente “SOS Animais Vila Nazaré” se reuniu em frente à casa da pensionista e protetora Joana da Silveira Silva, moradora da vila. Os quilos de comida que a psicóloga e voluntária Amanda Carvalho trouxera foram conseguidos por meio de doações e seriam distribuídos mais tarde, quando os voluntários repetissem o ritual de percorrer as ruas de chão batido com os carrinhos de supermercado com alimento, deixando um potinho com ração e outro com água a cada esquina.

Voluntários, em grupo reduzido, demonstram como funciona a alimentação dos animais. / Crédito foto: Lívia Rossa

A ação começou em março deste ano e virou rotina para pessoas que não suportaram aceitar inertes as condições às quais os animais estiveram submetidos por meses antes da chegada do trabalho do grupo. Aproximadamente 250 animais já foram resgatados e muitos outros ainda permanecem no local, já que o “SOS” não tem abrigo fixo e depende somente da boa ação dos interessados no projeto. 

Na contramão da maioria das atividades, durante o início da pandemia do novo coronavírus, os voluntários iam com maior frequência na Vila Nazaré para cuidar dos animais. Com o retorno aos trabalhos, os horários de visitação ficaram escassos e poucos voluntários conseguem ir na região em turno comercial e durante a semana. A situação preocupa os filantropos, já que cachorros e gatos são totalmente dependentes da organização para garantirem, no mínimo, uma refeição em dias alternados. 

Além da alimentação, a frente de trabalho consiste na busca por lares temporários e adotantes, no transporte dos pacientes mais debilitados e na internação para tratamentos veterinários. 

As adoções acontecem por meio das redes sociais. Os voluntários buscam, por meio de página do Instagram e do Facebook por meio de fotos, pessoas que disponibilizem lares temporários aos animais. Castrações também são priorizadas. Há muito trabalho a ser feito e, por vezes, as particularidades de cada animal complicam o encontro de lares. 

É o caso dos cachorros com cinomose, doença viral contagiosa (somente entre cachorros) muito comum entre os animais abandonados, que acaba paralisando os membros e pode levar até a morte. 

Por conta das internações, aliás, o grupo já acumula dívida de quase R$20.000 em uma clínica próxima à vila. Para tentar sanar os gastos com tratamento veterinário foi organizada uma “vaquinha online”. Enquanto isso, a busca por dinheiro acaba sendo feita entre os próprios voluntários e pessoas próximas.

É fato que, em meio à pandemia da Covid-19, a situação econômica dos brasileiros piorou. Muitas famílias perderam empregos, outras tiveram seus salários reduzidos. Se a situação já era crítica antes do novo coronavírus para os moradores da Vila Nazaré, após a chegada da doença, os problemas se intensificaram. 

Algumas famílias do local moram em situações de extrema precariedade, sem rede de esgoto ou água encanada. 

Com a situação da realocação em função das obras, famílias inteiras deverão ser espremidas em apartamentos estreitos. A questão é que junto de grande quantidade de filhos por família, também existem outros “integrantes” numerosos, os animais de estimação. Esses, por sua vez, são deixados à própria sorte e, em casos drásticos, são deixados para morrer. 

“Tem muito bicho, parece que quanto mais tiram, mais aparecem. Os moradores pedem para que a gente fique com os animais e vai tendo cada vez mais trabalho para nós”, afirma Joana. 

Os residentes da Vila sabem que os voluntários não irão se omitir para resgatar os animais, mesmo que o grupo não tenha condições e os recursos financeiros estejam em falta.

Em uma das vielas,  um casal de moradores, sem o menor pudor, se aproxima do grupo de voluntários e pede: “estamos indo embora na sexta-feira e temos um cachorro ‘lá’, vocês podem pegar ele?’”. As voluntárias perguntam a localização e dizem que farão o possível. “A cena é recorrente”, afirmam as cuidadoras, indignadas.

Em retrato cruel, abandono e maus-tratos são comuns na vila

Tumores, bicheira, queimaduras com água fervente são a realidade de muitos animais abandonados. Alguns tutores, querendo se desfazer dos bichos, maltratam-nos até que morram de fome ou frio ao relento. 

Como se não bastasse o descaso, quando os protetores vão fazer a retirada dos animais do meio do lixo (às vezes no pátio dos residentes da vila), alguns moradores deferem xingamentos aos voluntários. 

Protetores retiram animais do meio do lixo. / Crédito foto: Lívia Rossa

“Já chegamos a sair para alimentar e acabamos achando, no meio do caminho, cachorros quase morrendo. No início foi muito intenso, agora estamos encontrando principalmente ninhadas em meio à sujeira”, lembra Amanda. 

Outra ameaça constante são as máquinas que participam do processo de demolição das casas. Ninhadas inteiras se abrigam entre os escombros; alguns cachorros já foram, até mesmo, mortos pelo descuido dos trabalhadores que não verificam se há bichos no local. A luta dos voluntários é, literalmente, uma guerra contra o tempo.

Os integrantes da “SOS” afirmam que muitos cachorros e gatos, depois de abandonados, voltam exatamente aos entulhos onde costumavam ser suas casas. A diferença é que os donos, que deveriam cuidar e dar amor, foram embora.

 

“Em toda minha vida tratei os animais da rua, mas agora tá demais”, afirma Joana. Ela vive há 34 anos na região e criou toda a família no local, mas com o reassentamento previsto, deve sair da Vila Nazaré antes do fim de junho. Até lá, a moradora vai ficando porque sabe que representa o elo de ligação entre voluntários e vila no salvamento de cães e gatos.

Desde o início das mudanças, Denise da Silva Silveira, servirora registral e filha de Joana, diz que “o número de animais nas ruas aumentou drasticamente, ou seja, os bichos foram ficando para trás mesmo”, acrescenta. A voluntária teve a iniciativa de tirar fotos da situação que presenciava diariamente e publicar nas redes sociais. Ao poucos, interessados foram aparecendo e se somando ao projeto 

Denise possui dez animais resgatados da rua. Ela afirma que a situação é crítica porque, além de animais de pequeno porte, existem até mesmo cavalos e porcos na região e não há um plano para a retirar desses animais. 

Morando junto ao entulho, animais e pessoas dividem espaço

Nas ruas que dão de fundo para as obras da Fraport, um muro grande e cinza se impõe. / Créditos foto: Lívia Rossa

Adentrando os escombros, deixados para evitar que as famílias voltem a morar no local, a situação da Vila Nazaré vai ficando ainda mais complicada. Nas ruas que dão de fundo para as obras da Fraport, um muro grande e cinza se impõe.

No horizonte, ao fim da tarde, o pôr do sol e os aviões passando bem em cima da região quase abstraem a realidade crítica onde pessoas e animais são negligenciados em relação às condições sanitárias. 

No dia da reportagem, o grupo de voluntários se concentrava no resgate de quatro filhotes que estavam, literalmente, passando fome e frio dentro de um capacete em meio aos sacos de lixo que seriam destinados à reciclagem. 

Os cachorrinhos estavam em uma das partes mais críticas da vila, onde a maioria das casas eram compostas por tábuas e madeiras usadas. Quando retirados do meio da sujeira, com dias de vida, alguns filhotes ainda tentavam mamar. Era a segunda ninhada encontrada naquela semana. Na anterior, mais duas ninhadas foram achadas.

O que diz a prefeitura

A prefeitura de Porto Alegre afirma que realiza trabalho de castração na região da Vila Nazaré, em parceria com a Superintendência de Ação Social e Cooperativismo do Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB). O Demhab está localizado próximo à vila e o órgão afirma que os tutores podem deixar seu animais no local para serem castrados. Após a cirurgia, alguns bichos são deixados em espécie de albergue temporário, o chamado “QG” do DEMHAB.

Por meio de comunicado, a prefeitura informa que em “desde o início da quarentena pelo novo coronavírus, em março, já foram esterilizados 59 animais de moradores da Vila Nazaré que serão reassentados no Loteamento Irmãos Maristas. No total, desde dezembro do ano passado, a Unidade de Saúde Animal Victória (Usav) realizou 184 procedimentos em cães e gatos na região”.

Os voluntários da “SOS Animais Vila Nazaré” afirmam que alguns animais, de fato, já foram castrados pela prefeitura, mas que o órgão não adentra a vila para resgatar animais que estão nas ruas abandonados, somente castra os que já têm dono. Outra reivindicação é sobre a falta de fiscalização sobre os abandonos, já que ninguém é responsabilizado.

A Secretária adjunta da Secretaria Municipal do Meio Ambiente de Porto Alegre (SMAM) Viviane Diogo afirma que o abandono é um problema recorrente em comunidades como a Vila Nazaré por ser o que define como “uma questão cultural” e reforça que abandono é crime. Reconhece, no entanto, que a fiscalização é complexa. “A gente orienta as pessoas, mas é um ambiente difícil de controlar”, afirma a Secretária. 

De acordo com ela, geralmente são buscados de 15 a 20 animais para castração, por vezes indicados pelo grupo de voluntários da “SOS” e, em outros casos, por outro grupo de voluntários da própria Prefeitura que também atua na região. As ações, segundo Viviane, foram paralisadas em função do coronavírus, junto com o trabalho na secretaria.

Enquanto o “toma-lá, da cá” não se resolve, a organização entre os voluntários é peça-chave

A organizadora de interiores e voluntária Claci Johann acredita que os esforços devam ser voltados para ajudar os animais da vila, independente das questões burocrática. Ela, que já teve experiências anteriores com voluntariado em comunidades em situação de vulnerabilidade sabe bem dos desafios de atuar numa região assim, mas acredita que cada ação valha a pena para ajudar os animais, a quem se refere como “anjos”.

Assim como todos os outros voluntários, Claci tem sua rotina de trabalho, mas vive em função do grupo. “Somos um grupo de voluntários que têm família, empregos, filhos animais, compromissos e tiramos um tempo das nossas vidas para nos dedicarmos a estes animais”, diz, emocionada. 

O pensamento de Claci entra em consonância com o dos outros voluntários. Até que a última família seja reassentada da Vila Nazaré, o grupo continuará na região fazendo o que estiver ao seu alcance para ajudar os animais. Serão dias em que as fotos alternarão, nas redes sociais, entre as que mostram animais em situações degradantes; outras vezes, serão as fotos que demonstram o carinho dos caninos e felinos que receberam um lar com dignidade. 

 

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